Matéria: Mayra Peniche
Edição: Élida Cristo Miranda
No dia 18 de maio a Câmara dos Deputados aprovou, por 264 votos a 144, o texto base que regulamenta o homeschooling no Brasil. A proposta já está no Senado, onde a Comissão de Educação está realizando ciclos de debates com representantes da educação contra e a favor do projeto. Em 2018 essa prática foi considerada ilegal pelo Supremo Tribunal de Justiça.
O homeschooling é um modelo de educação que consiste em realizar o processo de educação em casa, não na escola. O modelo se contrapõe à noção da educação como uma responsabilidade compartilhada entre a família e a escola.
Defensores do modelo acreditam que cabe exclusivamente à família repassar conhecimento científico/acadêmico, valores, crenças e convicções.
Essa prática é regulamentada em 65 países como Estados Unidos, França, Noruega, Austrália, Portugal, Rússia e Nova Zelândia. No entanto, é considerado crime em países como a Alemanha e a Suécia.
A família que opta por esse modelo de ensino não precisa possuir graduação em Pedagogia ou nas matérias que serão ministradas. Mas na maioria dos países onde o ensino domiciliar é regulamentado, um dos pais ou o tutor precisa ter alguma formação de nível superior.
Antes de ser considerado ilegal pelo Supremo Tribunal de Justiça, pessoas que recebiam ensino domiciliar poderiam ingressar nas universidades através do Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja). Para isso, bastava conseguir a pontuação mínima de 100 nas provas objetivas (Códigos e Linguagens, Ciências Naturais, Ciências Humanas e Matemática) e 5 na redação. Atualmente não é possível ingressar em universidades sem ter concluído o Ensino Médio em escolas regulares reconhecidas pelo Ministério da Educação (MEC).
Interesses por trás da proposta
Para Marcelo Costa, Presidente da Comissão do Direito à Educação da OAB Pará, a aprovação do homeschooling está relacionada com um movimento de enfraquecimento da educação pública.
Marcelo Costa também acredita que o texto base não reflete acerca de outros interesses por trás da proposta. "Não há qualquer reflexão acerca dos interesses econômicos que tangenciam as propostas de ensino domiciliar, quando se sabe que já há toda uma sorte de serviços e produtos privados educacionais voltados para este setor: livros, suporte pedagógico, mentoria, tutoria etc.”, comenta o presidente.
Ele também alerta para o fato de que não está claro que políticas públicas podem privilegiar este tipo de ensino, prejudicando os já escassos investimentos em educação. “Não conseguirmos vislumbrar quais escolhas políticas, na forma de programas ou políticas públicas, podem ser adotadas em apoio e incentivo a esta modalidade de escolarização em detrimento dos investimentos públicos em educação, necessários à superação dos gigantescos desafios colocados para esta etapa da educação brasileira", explica.
Ensino domiciliar e a socialização
Apesar do texto base mencionar a obrigatoriedade do convívio social das crianças em outros locais que não o núcleo familiar, a proposta não revela como isso seria feito. Para vários especialistas, a escola é um dos primeiros locais de convívio social e um lugar de pluralidades, tanto de pensamento quanto de vivências.
Na escola crianças têm a oportunidade de conviver com outras pessoas, realidades e crenças.
É importante ressaltar que o processo de socialização é dividido em dois tipos, a socialização primária e a secundária.
Na primária a criança aprende e interioriza a linguagem, as regras básicas da sociedade, a moral e os modelos de comportamento do grupo a que pertence. A família é um exemplo de socialização primária.
Opositores do modelo de educação domiciliar alegam que a socialização secundária, que é todo o processo que introduz um indivíduo já socializado em novos setores no mundo, é prejudicada com essa modalidade de ensino, pois impede a criança/adolescente de vivenciarem outras relações fora do núcleo familiar.
Um filme que aborda a importância da socialização é Capitão Fantástico (2016). O filme conta a história de uma família que vive isolada em uma floresta. Após a morte da mãe das 6 crianças, eles são "forçados" a ter contato com o mundo fora da floresta. Constantemente o filme mostra o conflito das crianças ao se relacionarem com o mundo exterior, pois apesar dos pais terem ensinado Filosofia, Sociologia e até técnicas de sobrevivência, a falta de convívio social gera diversas dificuldades.
Programa da Série Conectados, da Rádio Margarida, sobre a importância da escola para crianças e adolescentes.
O papel da escola na denúncia de casos de violência
Há quatro anos dando aulas em um curso de idiomas, o professor Vinícius Campos já ouviu alguns relatos de alunos que sofriam violência doméstica. Um dos casos que o professor conta foi o de quando percebeu que uma das suas alunas estava sendo agredida em casa. Imediatamente o professor informou à coordenação do curso de inglês onde trabalha que, por sua vez, averiguou e prestou a denúncia ao Conselho Tutelar.
"Eu tinha uma aluna que veio me contar que todas as vezes que ela errava alguma questão, era agredida pela mãe. Logo em seguida eu entrei em contato com a coordenação para solucionar essa situação. Esse caso ainda é bem 'mais simples', pois tenho amigos professores que contam que seus alunos já denunciaram sofrer até violência sexual em casa", relata o professor.
Vinicius também acredita que o homeschooling tira o papel fundamental da escola no desenvolvimento da criança e do adolescente. "A gente pode até usar a pandemia como exemplo. É perceptível as diferenças na interação das crianças depois de 2 anos de isolamento. A gente via, após o retorno às aulas presenciais, a alegria delas por estarem interagindo novamente com crianças da mesma faixa etária", comenta o educador.
Na escola, educadores e educadoras assumem papel fundamental na denúncia de casos de violência doméstica
O Presidente da Comissão do Direito à Educação da OAB Pará observa que é nesse ambiente que podem ser prevenidos e notificados os casos de violência domiciliar. “É na escola que crianças e adolescentes exercem o direito à convivência comunitária, integração essencial, inclusive no que consistem às medidas de prevenção e notificações de violações de direitos, violência sexual, física e psicológica, que podem ocorrer no espaço intrafamiliar e extrafamiliar”, explica. Marcelo Costa também relembra que, em 2021, o Disque 100 indicou que 81% das violações dos direitos das crianças e adolescentes acontecem na casa da própria vítima.
Direito constitucional ameaçado
Para Marcelo Costa, o homeschooling é inconstitucional. "A aprovação do ensino domiciliar assinala uma transgressão às normas e garantias constitucionais, aos princípios da isonomia, igualdade, proteção integral e absoluta prioridade para convivência e aprendizado no ambiente escolar, e ainda, por se tratar de direito fundamental a convivência com outras crianças e adolescentes", afirma.
Assim como Marcelo, diversas outras entidades ligadas à Educação, aos direitos humanos, movimentos sociais e instituições de ensino se manifestaram contrárias a essa modalidade de ensino. Confira o manifesto coletivo aqui.
O UNICEF publicou um manifesto em que se posiciona contrário à proposta do homeschooling: "Dar opção aos pais de assumir a responsabilidade pelo ensino pode impactar negativamente a educação de crianças e adolescentes. Autorizar a educação domiciliar significa privar crianças e adolescentes do seu pleno direito de aprender".